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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O TRIBUNAL NA CONTRAMÃO DA REALIDADE

A interpretação literal da lei continua a emperrar a Justiça no país, a burocratizar a prestação de serviço jurisdicional, apesar da informática e dos avanços tecnológicos nos últimos anos. A mais absurda e surpreendente decisão origina-se do Superior Tribunal de Justiça, quando decide que o prazo judicial, vencido numa segunda feira de carnaval, só poderá ser considerado como feriado se a parte apresentar comprovante de ato normativo local de que a segunda feira é realmente feriado. Se protocolada a petição nessa data, sem documento comprobatório, o recurso não será recebido, por descumprimento de prazo processual, considerando que a segunda feira de carnaval não é feriado, mas dia de atividade nos fóruns de todo o país. 

Recentemente, a ministra Laurita Vaz manifestou em Agravo Interno sobre o assunto: 

“A segunda feira de carnaval, a quarta feira de cinza, os dias que precedem a sexta feira da paixão e, também o dia de Corpus Christi, não são feriados forenses, previstos em lei federal, para os tribunais de justiça estaduais. Caso essas datas sejam feriados locais deve ser colacionado o ato normativo local com essa previsão, por meio de documento idôneo, no momento de interposição do recurso." 

Esse entendimento do STJ é tido como “jurisprudência defensiva", ou "jurisprudência perversa", na compreensão do professor José Rogério Cruz Tucci. A advocacia já se manifestou contra esse posicionamento da Corte que objetiva restringir o número de processos a serem julgados pela Corte de Justiça. 

Nos debates travados sobre o assunto, um ministro ficou vencido: Raul Araújo assegurou a "falta de razoabilidade de jurisprudência do STJ", nessas situações. Disse mais o ministro: "Duvido que exista algum tribunal do país que esteja de portas abertas na segunda feira de Carnaval. É um absurdo. Segunda feira de Carnaval, nenhuma repartição burocrática do país, só polícia, segurança, saúde”. 

Veja-se até que ponto o Judiciário foge da realidade fática para admitir vigência de lei que não se coaduna com o costume do povo e com a realidade dos fóruns: inadmitir como feriado a segunda feira de carnaval, para efeito de prazo processual! Exigir comprovação de ato normativo do local de que a segunda feira de carnaval é feriado! Como muito bem disse o ministro Raul Araújo, não há um só fórum na capital e no interior com as portas abertas para protocolo de eventual petição nesse dia. 

O STJ, como os outros tribunais estão assoberbados de recursos para julgamento e ainda usa o tempo de tantos ministros para decidir uma matéria dessa natureza. É o óbvio ululante de que nenhum operador do Judiciário trabalha neste dia nos fóruns, mas o STJ insiste em que a segunda feira de carnaval não é feriado e o prazo corre naturalmente, como se fosse um dia qualquer. Essa decisão contribui enormemente para valorizar o papel e desconsiderar a realidade nacional. 

Bem verdade que o texto do art. 1003, § 6º do Código de Processo Civil, contribui para o abusurdo: “o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso”. Mas para decidir desta forma, há necessidade de observância do disposto no art. 4º, que fixa o princípio da primazia da decisão de mérito, em detrimento de quizílias de menor valor. Ademais o art. 139, inc. IX, da mesma lei considera dever do magistrado sanear vícios processuais, o que quer dizer oportunizar o recorrente a comprovar o alegado feriado, evitando arquivamento do feito por essa motivação. 

Na exposição de motivos do CPC consta: "Com objetivo semelhante, permite-se no novo CPC que os Tribunais Superiores apreciem o mérito de alguns recursos que veiculam questões relevantes, cuja solução é necessária para o aprimoramento do Direito, AINDA QUE NÃO ESTEJAM PREENCHIDOS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE CONSIDERADOS MENOS IMPORTANTES." (Grifo nosso). 

É verdade que o legislador não se importa muito com as discussões e aperfeiçoamento das leis, haja vista o longo tempo no qual permaneceu no Congresso o Projeto do Código Civil: 30 anos, mas daí para oferecer interpretação absolutamente fora do contexto, da realidade e do costume é distância enorme. 

Os tribunais já assumiram, em muitos momentos, a condição de legislador, haja vista a concessão do auxílio moradia para os magistrados; com maior razão deveriam definir essa esdrúxula situação e cessar o entendimento de que a segunda feira de carnaval não é feriado. 


Salvador, 27 de outubro de 2018. 

Antonio Pessoa Cardoso 
Pessoa Cardoso Advogados.

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