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domingo, 27 de julho de 2014

MEU MESTRE

Nos anos quarenta chega à cidade de Santana, Ba., distante 850 quilômetros de Salvador, um padre, na condição de pároco desse município; em pouco tempo, mostrou sua verdadeira vocação para a formação pessoal e profissional dos jovens.

Era sisudo, extremamente tímido, mas de cultura inigualável e de fé inquebrantável.

A dedicação desse homem à igreja e à educação serviu para melhorar o nível da religiosidade e da cultura do povo de Santana, além de contribuir para o desenvolvimento do pequeno município. A assunção da paróquia pelo padre Felix Souza foi importante para toda a comunidade, porque retirou da mente dos mais velhos a crença corrente de que um dos seus antecessores teria “atirado praga” na cidade, motivo do atraso de todo o município. 

As famílias de Santana devotavam sincero respeito, significativa reverência ao padre que se mostrou grande educador, fundamentalmente pelos bons princípios morais que transmitia ao seu “rebanho”. Louvavam a Deus pela sua presença e temiam, no início, sua eventual transferência para outra paróquia, fato comum, mas que efetivamente nunca aconteceu; a aproximação do padre com o povo foi de tal ordem que bispo nenhum se aventurou a transferi-lo.

O tempo passou e a pequena cidade de Santana atraia jovens das cidades vizinhas, motivado pela fama do educador. Seus ensinamentos morais, religiosos e intelectuais repercutiam em toda a região, através da escola que fundou e dirigiu durante toda a sua vida, denominada Educandário Diocesano Sant’Ana.

Além do Educandário, criou uma irmandade católica, “Filhas de Fátima”, formada por moças religiosas que se entregavam à Congregação para difundir os princípios da religião católica. As “Filhas de Fátima” prestaram e prestam relevantes serviços ao Educandário, onde lecionam, depois de especializarem nesta ou naquela matéria.

Algum tempo depois, no comando da igreja católica em Santana, o padre, meu mestre, foi promovido na hierarquia da igreja, a Monsenhor, mas não fazia questão do título recebido e todos  tratavam-no, como ele preferia ouvir, padre Felix. O Monsenhor não ficou muito tempo como pároco, pois as atribuições educacionais absorviam suas atividades e, assim, a igreja permitiu-lhe dedicar somente à educação, no Educandário Diocesano Sant’Ana, que não é escola pública, mas pertencente à Diocese de Bom Jesus da Lapa, e entregue ao comando do Padre e das Filhas de Fátima. Apesar de particular, a escola cobra módicas mensalidades e não se registra um único caso de cobrança judicial dos  inadimplentes, que são numerosos. Aliás, não se anota constrangimento algum para os alunos que atrasam no cumprimento de suas obrigações, porque o costume é esperar condições dos pais para adimplir, além, de ser comum a gratuidade para aqueles sem condições financeiras. Há inexplicável tolerância, movida pelo sentimento de que a escola não visa lucros, mas busca oferecer cultura aos seus alunos.

Monsenhor Felix possuía cultura sem igual e falávamos até que ele tinha proteção superior, tamanhos seus conhecimentos e sua memória. Era um padre que cultuava, como poucos, a língua pátria. Entusiasmava a todos quando falava, nem tanto pelos dotes oratórios, mas pelos conhecimentos que transmitia. Era diretor do Educandário, mas estava sempre pronto para substituir eventuais ausências de seus professores; não importava qual a matéria, português, geografia, matemática, francês, o Monsenhor estava sempre em sala de aula.

Quantas vezes programava acompanhar o Monsenhor entre a igreja e sua casa, somente para com ele conversar e aprender algo a mais! 

Extremamente metódico, zelava pelo cumprimento de princípios morais e religiosos que professava e ensinava aos seus alunos. Fazia caminhadas, várias vezes ao dia, de casa para a igreja Nossa Senhora de Fátima, vizinha do Educandário. Não adiantava seus alunos oferecer-lhe carona, porque sabiam que polidamente e ao seu jeito, era recusada.  

O Educandário Diocesano já não tem o Monsenhor Felix; a Congregação Filhas de Fátima sente a ausência do seu diretor; a cidade de Santana lamenta e chora a viagem sem volta do pároco inigualável, do educador admirável.

O Padre, aos 82 anos, seis anos atrás, morreu e a cidade não acreditava na notícia, pois imaginava ser o homem imortal.   

Esta digressão presta-se para mostrar o início da trajetória de um aluno que aprendeu os ensinamentos do Mestre, além de homenageá-lo, porque responsável pela ascensão do discípulo.

Iniciei meus estudos no Educandário, onde conclui o curso ginasial, correspondente hoje ao primeiro grau. Meu pai, quando vivo, sempre dizia, que, não fora o Educandário do Monsenhor Felix não teria “filhos formados”. E conseguiu formar todos os cinco filhos, dos quais dois magistrados. É que, ainda nos anos sessenta, era a única escola que tínhamos na cidade e nossos genitores não tinham recursos para custear os estudos na cidade de Caetité, por exemplo, distante de Santana aproximadamente 300 quilômetros, e que, na época, se destacava por possuir boas escolas.

Os alunos que sairam do Educandário, em sua maioria, obtiveram êxito nas carreiras empreendidas.

Eu, por exemplo, vim de Santana, fiz o segundo grau em Salvador, rumei para o Rio de Janeiro, onde ingressei na antiga Faculdade Nacional de Direito, da qual era reitor o grande baiano, Pedro Calmon. Conclui o curso de Ciências Jurídicas no ano de 1970, apesar das dificuldades advindas das ameaças de desligamento, face à presença nos movimentos estudantis. Participei ativamente dos movimentos e cheguei a desfilar pelo centro do Rio de Janeiro, deitado em uma cama e carregado pelos colegas, simbolizando a preguiça do ministro da Educação na solução dos problemas educacionais do Brasil.

Calabouço era o restaurante dos secundaristas no Rio de Janeiro, ao qual frequentei nos primeiros anos. Edson Luis, um dos mártires  estudantis da resistência ao golpe, morreu exatamente no Calabouço, no ano de 1968; o assassinato dele provocou revolta e protesto na passeata dos 100 mil. O ato contou com participação ativa do clero, dos professores, de intelectuais, artistas e jornalistas e terminou sem incidente algum. Eu estava lá. 

Trabalhei na Agência de Notícias, ASAPRES, e mais tarde, através de concurso, tornei-me funcionário da Petrobrás; desliguei-me do emprego, após a conclusão do curso de Direito; fui orador da turma, e explanei os princípios que aprendi com o Monsenhor Felix, aperfeiçoados com a vida da cidade grande.

Hoje, os estudantes, os trabalhadores e os funcionários públicos não mais incomodam os governos; não reclamam, não reivindicam seus direitos; recebem o salário que aprouver aos empresários, estudam de conformidade com as regras traçadas pelo sistema. O clamor popular não é mais ouvido: “abaixo a ditadura”; “abaixo a corrupção”, etc. Esta praga que destrói o patrimônio nacional, na atualidade, acaba também com o conceito do país e ninguém grita; aceita-se a delegação concedida através do voto aos políticos, que fingem representar o povo no Congresso Nacional.  

A advocacia, no oeste da Bahia, serviria como trampolim para a política; nos sete anos de exercício da profissão, 1971/1977, na cidade de Santana e região, percebi a incompatibilidade de meu perfil para a vida partidária. Rumei definitivamente para o trabalho nos fóruns do oeste baiano, na expectativa de concurso público para o cargo de Juiz de Direito, que só aconteceu sete anos depois de formado, em 1977. Não perdi tempo, porque aprimorei meus conhecimentos para usar na magistratura.

Militei também como professor naquela mesma escola, onde aprendi princípios cristãos, inclusive e principalmente na defesa dos necessitados. Esses ensinamentos foram incutidos na minha mente pela minha mãe, por meu pai e pelo meu educador, Monsenhor Felix. 

A advocacia provocou-me questionamentos de toda ordem: o pequeno perdia a causa porque não dispunha de recursos para contratar bons advogados; as comarcas estavam sempre sem juiz titular e o substituto sem condições para agilizar a prestação jurisdicional; os servidores maltratados, injustiçados e explorados pelo sistema continuam sem incentivo na carreira; a morosidade é patenteada pelo Judiciário e constitui reclamação de todos, pobres e ricos. Obstáculos de outras ordens preocupavam-me, a exemplo da extrema burocratização dos serviços judiciários, a imperfeição das leis, etc. Mesmo assim, enfrentei o desafio e continuo lutando, contra a formalidade exagerada, contra a burocratização, contra o império do papel nos serviços da Justiça. A desigualdade social tornou-se apanágio de luta.

A posse no cargo de Juiz de Direito da comarca de Oliveira dos Brejinhos, 1977, marcou o inicio de um novo sonho. Quebrei paradigmas, inovei e reclamei; passei por Bom Jesus da Lapa, em 1980/2 e Barreiras, em 1983 até chegar à Capital no ano de 1989. Busquei ensinamentos do Direito em Portugal, na França, nos Estados Unidos, escrevi livros, centenas de artigos; depois de mais de 35 (trinta e cinco) anos na magistratura, cheguei ao cume da carreira: tornei-me desembargador e finalizei como Corregedor das Comarca do Interior. Nessa condição, visitei todas as comarcas da Bahia.

Aposentado formalmente, reinicio a atividade de advogado, de escritor, de palestrante com os mesmos sonhos, com a mesma disposição, com os mesmos ideais transmitidos por meus pais, cicatrizados por aquele humilde padre que só viveu para servir.

Salvador, julho/2014.

Des. Antonio Pessoa Cardoso.
PessoaCardosoAdvogados



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