quinta-feira, 11 de setembro de 2025

SAIU NA FOLHA DE SÃO PAULO

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

SALVAR ARTIGOS

Drauzio Varella
Descrição de chapéuUSP

Os antivacina e a estupidez

Negar os benefícios da imunização exige ser ignorante, estúpido ou mal-intencionado

10.set.2025 às 15h31

Esses ativistas antivacina emergiram das catacumbas da estupidez humana. Nas nações mais ricas da Europa, no início dos anos 1900, a expectativa média de vida mal chegava aos 40 anos. Quando o século 20 terminou, esse número havia quase duplicado. A vacinação teve papel fundamental nesse aumento.

No curso de medicina na USP, visitávamos a enfermaria de varíola do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo. Era um ambiente lúgubre, no qual os pacientes passavam o dia deitados, sem colocar os pés no corredor, medida necessária para impedir que um vírus contagioso como aquele se espalhasse pelo hospital inteiro.

Nunca mais esqueci daqueles homens com o corpo coberto de feridas e os rostos cheios de vesículas que deixavam marcas pelo resto da vida. Vestiam pijamas azuis, obrigatórios, para identificá-los caso quebrassem o isolamento. Na enfermaria feminina, além das cicatrizes que lhes roubavam a beleza, os olhares opacos e os soluços abafados criavam um cenário trágico.

Havia formas mais benignas da doença, mas as mais comuns vinham associadas a taxas de mortalidade de 20% a 40%, índice que ultrapassava 90% nas apresentações malignas.

Na década de 1960, a OMS, Organização Mundial da Saúde, deu início à campanha global de erradicação da doença. Em 1980, a OMS declarou o vírus da varíola extinto do mundo. O flagelo que disseminou sofrimento e morte por mais de 10 mil anos desaparecera da face da Terra graças à engenhosidade de Edward Jenner, o criador da vacina, e ao empenho da OMS e dos países que vacinaram suas populações.

Digo isso, caríssimo leitor, porque tenho acompanhado o esforço —até aqui infrutífero— dos norte-americanos para que o presidente da República demita do cargo mais importante no sistema de saúde dos Estados Unidos o advogado Robert Kennedy Junior, o militante mais feroz do antivacinismo naquele país.

Esse senhor é um mentiroso contumaz. Não se cansa de repetir uma sucessão de absurdos para convencer as pessoas a não se vacinarem. Com argumentos falsos, insiste que as vacinas são perigosas, que podem causar doenças graves e levar à morte. Só não ousa dizer que podem transformar seres humanos em jacarés.

Para convencer os incautos, diz, sem pudor, que as vacinas contra a Covid não foram estudadas nem demonstraram efeito protetor. É chocante ver um estúpido como esse ser escolhido para um cargo tão importante, justamente pelo presidente do país em que mais de 400 cidadãos receberam o Prêmio Nobel e que mais contribuições tem dado à biologia, à medicina e às ciências da saúde.

Os benefícios das vacinas para a humanidade são tantos e de tal ordem, que negá-los exige quatro condições: ser muito ignorante, estúpido ou mal-intencionado. A quarta é a de acumular essas três características. Eles justificam suas posições contrárias à ciência com o argumento da liberdade individual. "Tenho o direito de não me vacinar." Visto que não há como vacinar adultos à força, o direito está assegurado, ainda que acompanhado do risco de espalhar o agente infeccioso contra o qual não foram imunizados.

O que as leis não deveriam permitir é que eles façam uso das redes sociais para mentir e distorcer dados científicos, com a intenção de confundir os ingênuos e cometer o crime de pôr em risco a vida de crianças e também dos adultos que se deixam convencer por gente dessa espécie.

É chocante ver médicos falando contra a vacinação. Quem são eles? Que faculdade lhes outorgou o diploma? Por que nossos conselhos estaduais e o federal não lhes cassam a licença para clinicar? Quando o antivacina é médico, o mal é muito maior.

Estávamos no final de 2021 quando comecei a atender no Centro de Detenção Provisória do Belém. Surpreso com o pequeno número de casos de Covid, perguntei ao diretor como estavam os índices de vacinação.

Experiente, ele respondeu que eram de 100%. Duvidei. Contou que quando o preso recusava a imunização, ele aguardava a hora da tranca, ia até a porta da cela —sempre com mais de 20 homens trancados— e chamava o rebelde pelo nome completo. Explicava que o Estado disponibilizava a vacina, mas que ele não podia obrigar ninguém a tomá-la.

Se o indivíduo recalcitrante insistia na negativa, ele acrescentava: "Não posso colocar em risco a vida dos familiares dos seus companheiros. Vou ter que suspender as visitas de todos". 

Nenhum comentário:

Postar um comentário